Lista de sonhos
Bicicleta lilás com cestinha. Barbie que pinta o cabelo. Brincar com o Otávio nas férias. Receber flores.
Ela tinha seis anos mas parecia 70. Sempre com seus projetos vanguardistas de arte. Era apenas uma criança sapeca penando para levar a pré-escola sem grandes traumas. Não chorou no primeiro dia de aula, nem reclamava da comida ruim da cantina. Quando o pai a ensinou a ler, sentou no meio da turma para – entre onomatopéias mil – dar vida aos quadrinhos do Zé Carioca.
Jorge descobriu aquela pequena lista, em papel verde água, que também era a cor favorita da filha, entre documentos importantes, guardados em uma caixa vermelha, com uma tarja preta e espessa, que dizia: COISAS VALIOSAS. Boa parte das lembrancinhas feitas em datas especiais, como o dia dos pais e a Páscoa estavam ali. Encontrou todas as fotos 3×4 em ordem cronológica, assinadas, com diferentes assinaturas, pela mesma pessoa.
Ela, tão jovem, tão bonita, tão inteligente, tão promissora, tão teimosa, tão sua filha, tão humana, Anira.
Ser pai quando se perde um filho não é tarefa fácil. Além do sofrimento de perder aquele elo que mantinha parte de sua dignidade em pé, há o peso das lágrimas da mãe, que tem elos aparentemente mais profundos e sentimentais com o ser gerado. E nessa loucura toda de sofrer e de amar, ele ainda tem que assinar papéis, se preocupar com funeral, fazer a coisa toda certa.
Por vezes na capela funerária sentiu vontade de mandar todo mundo à merda, ligar a TV no brasileirão e fingir que ainda tinha 25 anos e toda a vida pela frente. Que não era casado com uma mulher tão forte e independente e que não tinha criado uma menina- mulher tão querida que lotou aquele lugar apertado o dia todo. Ele queria gritar, fechar o caixão e dizer: o espetáculo acabou, deixem a atriz descansar, ela tem que ir pra faculdade amanhã. E também tem que viajar pelo leste europeu, casar, ter filhos, fazer três tatuagens, conhecer a Aurora Boreal, ser feliz…
Mas não podia. Até era homem corajoso o suficiente para isso, mas não estava em posição de escolher. Ela estava ali deitada, com ar descansado, uns arranhões pelo rosto, os olhos fechados com durex, pois curiosos que eram, ficariam abertos pela eternidade.
Ele quis abraçá-la, ouvir sua risada gostosa, fazer cosquinha em seus joelhos. Mas era tarde demais. Entrou na capela, deu três passos e ofereceu o seu melhor: um buquê de tulipas vermelhas.