Arrepios

Arrepios, suspiros, verdades…

Arquivo para o mês “fevereiro, 2010”

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Hoje acordei meio Bob Dylan.

“Sete regras simples para a vida em esconderijo:

1 – Nunca confie em um policial vestido num abrigo.

2 – Cuidado com o entusiasmo e o amor, ambos são temporários da maneira mais ligeira.

3 – Quando perguntado se você se importa com os problemas do mundo, olhe nos fundos dos olhos daquele que o perguntou. Ele não perguntará novamente.

4,5 – Nunca dê o seu nome verdadeiro. E se algum dia lhe pedirem para que olhe para si mesmo, nunca o faça.

6 – Nunca diga ou faça nada que a pessoa a sua frente não possa entender.

7 – Nunca crie nada. Pois será mal interpretado. Vai acorrentá-lo e segui-lo pelo resto de sua vida, e nunca mudará.”

Ele me entenderia.

5ª Madrugada

Hoje foi, oficialmente, o dia mais quente do ano. Acho que em 32 primaveras, nunca desejei tanto que o verão fosse extinto. Fiquei o dia inteiro de pijama, fazendo um revezamento 4×4 entre filme, disco, sorvete e cerveja. Nessa ordem, 14 horas seguidas. Aí coloquei o Bleach. E foi nostalgia do início ao fim.

Tinha um monte de amigos do meu irmão lá em casa. Ele ficava o dia inteiro trancado com eles no quarto. Eu me lembro de ficar extremamente irritada com o barulho, eu tinha tanta coisa pra ler e meu ouvido era frágil de dar dó. Eu tinha alguns vinis nessa época. Beatles, Neil Sedaka, Wendy René, só os que mudavam minha vida. E ele entrou.

Eu estava assistindo Magnólia na tv, com uma cara de sono de dar dó. Ele sentou no sofá de canto, trocou a vasilha de pipoca pelos pés na mesa de centro e ergueu o volume. Eu abandonei o filme pra ficar, atônita, encarando aquele ser. Roupa surrada, cabelo estranho, sujo, meio vermelho, meio dourado. O tênis imundo. Nirvana na camiseta.

Ele nem desviou o olhar pro meu lado. Eu era pivete e ele era um deus de rebeldia. Detonou minha pipoca e saiu. Sorrateiro como havia entrado. Fui de ponta de pé até o quarto do meu irmão. Ele estava sozinho, aquele era o último amigo que foi pra casa bebaço. Vi o disco em cima da cama. Nevermind.

Corri pra minha vitrola cheia de estrelinhas prateadas, coisa de menina, claro. E me deliciei com uma das melhores sonoridades já produzidas por humanos. E aquele bebezinho que me deu vontade de ter filho, só pra que ele ouvisse Nirvana. Depois descobri quem era Kurt, quem era Krist, quem era Dave. Mas naquele momento eu só descobri o que era música.

Adeus.

“Diego,

Esperei a chuva passar e fui embora. Pensei que o mundo fosse acabar em água e vento e que aquelas orquídeas jamais cairiam no chão, apesar de tudo. Torci, rezei, implorei. Com os joelhos doloridos, vi pela porta de vidro as flores roxas caídas. Com elas caiu também o meu amor por você. Vou embora, mas deixei aquele arroz no forno, tá quentinho, é só comer. Deixei suas meias sem lavar, fiz a unha hoje, você pode fazer isso sozinho. Dei bom dia pro seu vizinho que lava a calçada sem camiseta, mas não tenho nada com ele, não adianta me jogar essa na cara. Nem nada. Estou indo, antes do próximo vendaval. Não te amo como antes, mas poderia. Até logo,

Patrícia”.

Ele saiu do trabalho mais cedo. A chuva havia dado trégua, era hora de ir embora. No carro, ouviu Novos Baianos como presságio do que viria a seguir. Lembrou de Ana, da sua carinha tão doce e de como detestava a sua vida. Sentiu medo quando viu a árvore caída em seu portão. Sentiu uma dor no coração ao avistar as orquídeas:

– Elas são tudo o que me mantém aqui. Vou embora quando elas cairem…

Entrou correndo, não tinha luz. Pegou o isqueiro, e avistou o bilhete na porta de vidro, clara e nublada. Ele queria xingar, bater, matar. Mas resolveu voltar pro carro, ouvir rádio, abstrair.

– A Patrícia avacalhou com a minha vida.

Lembrou da ciranda e de Ana. Rasgou o bilhete e chorou.

* Diego era apaixonado por Ana, como você confere abaixo.

Ciranda.

Ela tentou entender como era sua vida. Ao seu redor, deserto, as cores de sempre não brilhavam mais. Ela lembrou de um gosto amarelo, do cheiro de capim, do suor de um dia quente, de um vento adocicado, dos cabelos da mãe voando com a rede. Ela sentiu todas as dores do mundo. Ela ouviu o som do menino que pediu esmola, pra comprar pão, um pão de cola. Ela se refrescou na sombra da cerejeira do vizinho, aquele primeiro amor, aquele a quem nunca deu oi. Ela tem nome. Ana.

Ana tinha uns cabelos longos, marginais, brilhantes. Ana tinha uma bicicleta marrom, que herdou do tio-avô, de pneu careca, cintilante. Ana pintava as unhas de verde limão, pra luzir no escuro, pra tapar o medo do inseguro. Ana não conversava com muitas pessoas, só com aquelas que tinham sardas, olheiras e olhos redondos. Ana tinha raiva das diferenças entre classes, entre raças, entre religiões, entre cores. Ana era vermelha, um vermelho real, uma pimenta sem sal. Ana gostava de andar em nuvens de pelúcia.

Diego tentou entender o mundo. Ao seu redor, sossego, tudo era intensamente colorido. Ele lembrou de um avião ao longe, da feição bonita do pai, do jogo de futebol de quinta, da lua minguante da infância, das irmãs caçulas pulando corda. Ele sentiu todos as sensações boas do mundo. Ele ouviu o cantar de uma cigarra faminta, irritada, deslocada. Ele subiu no pé de limão da vizinha, pra roubar as jabuticabas que estavam ao lado, pra sentir a picada das formigas. Diego não gosta do nome, queria ser Pedro.

Diego-Pedro adorava os cabelos de Ana. Ele comprou uma bicicleta bordô, pra segui-la. Ele detestava as cores das unhas de Ana. Ele tinha sardas, olheiras e olhos redondos, mas nunca falou com ela. Ele sonhava com o dia em que iria desfazer todas as diferenças do mundo, unificar todas as pessoas, unir o útil ao agradável. Ele nunca deu oi para Ana, nem quando ela caiu de uma nuvem, em cima do seu tambor de confetes. Ele conseguiu apenas lhe dar a mão, e entendeu o mundo naquele toque. Se Ana entendeu sua vida, não se sabe, mas Diego – que não quis mais ser Pedro -, soube desde aquele momento, que a sua vida estava completa. E ele pôde, então, se apaixonar por Patrícia.

* Postado no www.gonzada.com em 22/07/09, é uma das minhas tetéias por ter sido classificado como finalista para um concurso literário de contos curtos.

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Hoje acordei meio Elizabeth Bennet

A morte de Anira – Parte 4

Lista de sonhos

Bicicleta lilás com cestinha. Barbie que pinta o cabelo. Brincar com o Otávio nas férias. Receber flores.

Ela tinha seis anos mas parecia 70. Sempre com seus projetos vanguardistas de arte. Era apenas uma criança sapeca penando para levar a pré-escola sem grandes traumas. Não chorou no primeiro dia de aula, nem reclamava da comida ruim da cantina. Quando o pai a ensinou a ler, sentou no meio da turma para – entre onomatopéias mil – dar vida aos quadrinhos do Zé Carioca.

Jorge descobriu aquela pequena lista, em papel verde água, que também era a cor favorita da filha, entre documentos importantes, guardados em uma caixa vermelha, com uma tarja preta e espessa, que dizia: COISAS VALIOSAS. Boa parte das lembrancinhas feitas em datas especiais, como o dia dos pais e a Páscoa estavam ali. Encontrou todas as fotos 3×4 em ordem cronológica, assinadas, com diferentes assinaturas, pela mesma pessoa.

Ela, tão jovem, tão bonita, tão inteligente, tão promissora, tão teimosa, tão sua filha, tão humana, Anira.

Ser pai quando se perde um filho não é tarefa fácil. Além do sofrimento de perder aquele elo que mantinha parte de sua dignidade em pé, há o peso das lágrimas da mãe, que tem elos aparentemente mais profundos e sentimentais com o ser gerado. E nessa loucura toda de sofrer e de amar, ele ainda tem que assinar papéis, se preocupar com funeral, fazer a coisa toda certa.

Por vezes na capela funerária sentiu vontade de mandar todo mundo à merda, ligar a TV no brasileirão e fingir que ainda tinha 25 anos e toda a vida pela frente. Que não era casado com uma mulher tão forte e independente e que não tinha criado uma menina- mulher tão querida que lotou aquele lugar apertado o dia todo. Ele queria gritar, fechar o caixão e dizer: o espetáculo acabou, deixem a atriz descansar, ela tem que ir pra faculdade amanhã. E também tem que viajar pelo leste europeu, casar, ter filhos, fazer três tatuagens, conhecer a Aurora Boreal, ser feliz…

Mas não podia. Até era homem corajoso o suficiente para isso, mas não estava em posição de escolher. Ela estava ali deitada, com ar descansado, uns arranhões pelo rosto, os olhos fechados com durex, pois curiosos que eram, ficariam abertos pela eternidade.

Ele quis abraçá-la, ouvir sua risada gostosa, fazer cosquinha em seus joelhos. Mas era tarde demais. Entrou na capela, deu três passos e ofereceu o seu melhor: um buquê de tulipas vermelhas.

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Hoje acordei meio Iona.

Música.

– Sorria!

– Não quero.

– Sorria…

– Não vou te obedecer.

– Sorria, por favor!

– Por que você quer que eu sorria?

– Porque você fica bem melhor assim.

Sorri.

E fiquei mais de meia hora pensando em como certas músicas se encaixam em nossas vidas como se fossem feitas para nós.

Mas ninguém disse que não foram.

Lô Borges, te dedico.

A porta verde e suas histórias…

Vitória mora em uma rua predominantemente amarela. Os postes são cinza em cima, amarelos embaixo. Os telefones públicos, os toldos das lojas, as lixeiras, os meio-fios, os quebra-molas, as faixas de pedestre…tudo amarelo. Mas, em um inverno desses mais gelados, fez o loirinho pintar sua porta amarela de verde. Cansou de ser igual a todo mundo.

Custou a perceber a influência daquela cor em sua vida. Mas a porta verde transformou tudo, mítica e meticulosamente. Ela passou de menina mimada e sem açúcar, para uma mulher madura e muito doce. Dos defeitos, o seu maior era o de não conseguir se apaixonar. Ela até tentava, fazia planos, mas era especialista em fuga à distância. Até que conheceu o loirinho.

Ele, como todo ser humano com sorte, tem nome e certidão de nascimento. Felipe é desses loirinhos de cabelo bem ensebado, que vestem roupas bem velhas de brechó e são bem intensos por natureza. Bem é uma das palavras mais usadas para qualificar esse tipo de gente. Se conheceram na fila da carne assada, na mercearia da esquina.

Vitória tem 25 anos, é formada em agronomia e trabalha numa floricultura. Quando o pai, neuro cirurgião, descobriu, quis mandá-la para a Europa, fazer coisas que gente rica faz quando vê uma crise, tentar curá-la. Ela se trancou e deixou um vaso de crisântemos roxos na porta verde.

Felipe tem 21 anos, mal começou a fazer medicina veterinária. Não tem carro, mora com os pais e nunca saiu do Brasil. Mas gosta tanto de Vitória que daria uma perna ou todos os seus discos do Pink Floyd pra passar uma noite inteira na casa dela. Não entende porque ela só quer passar algumas horas obscuras com ele. Nem que o maior problema dele tem nome:

Penelope.

Continua…

A morte de Anira – Parte 3

Parte 1, Parte 2

Oito e meia da manhã. Ele tinha que estar lá às oito. O diretor do colégio já tinha lhe acusado mais vezes do que o necessário de descaso escolar. Ele estava pouco se importando, mas a mãe era cardíaca – pelo menos era o que o pai sempre dizia – e ele tinha medo de perdê-la.

Escovou os dentes com pressa, feliz por saber que não precisaria ver a namorada. Ela havia viajado com os pais, ia passar o final de semana com os primos da cidade pequena. Ele já estava com saudades. Gostava do cheiro de salada de frutas que ela tinha nos cabelos. Estava apaixonado.

Entrou correndo no ônibus e enviou a segunda mensagem do dia:  Quando você volta? Que ela respondesse logo para o dia terminar mais cedo! Eles tinham planos para a segunda à tarde. Iam passar o dia na chácara do patrão do pai. Gostava tanto do sorriso cor de rosa que ela tinha…

Foi ao colégio fazer a maratona de provas do sábado. Discutiu com dois colegas e contou tudo em detalhes ofegantes ao melhor amigo. Almoçou com a mãe, na casa dos vizinhos e foi tirar uma música no baixo. Não tinha banda, nem pretensões, mas queria compor para ela.

Pegou o celular para ler a nova mensagem: Eu também. Terça. O coração disparou, perdeu o ritmo do Bloc Party e ele estava engrenado virtualmente com os garotos ingleses. Sentiu uma coisa estranha, uma vontade de chorar e concluiu que era amor. Tocou por mais uns vinte minutos até dar sede.

Levou o celular até a cozinha. Estava digitando: Volta log…quando viu os olhos da mãe em um pânico inédito:

– Gui, é o pai da Anira…

Ele derrubou o copo em cima do telefone. E tudo ficou coberto por cacos. Seus pés, seus pensamentos, seu coração.

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